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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

Ao espelho 

Acordo, mecanicamente saio da cama, dispo o pijama, tomo o duche matinal - que é sempre mais rápido e mais friorento do que o que eu desejaria -, visto uns trapos mais ou menos sofisticados, tomo o pequeno-almoço e sento-me então em frente ao computador, sequiosa de notícias que me diferenciem o hoje do ontem.
Há dias em que essas notícias me esmagam, me atropelam. Ontem foi um deles.

Como já tod@s saberão, foi descoberto o cadáver de um sem-abrigo que terá sido apedrejado até à morte por um grupo de menores com idades compreendidas entre os 10 e os 15 anos, todos alunos das Oficinas de S. José, no Porto. O corpo foi encontrado num poço de um edifício abandonado, nas proximidades do Hotel Vila Galé, na zona do Campo de 24 de Agosto, em pleno centro da cidade.
Da vítima, até agora, pouco se sabe, a não ser que tinha nacionalidade brasileira, era toxicodependente, teria cerca de 45 anos, era "travesti", prostituto e se chamava Gisberto (embora alguns amigos o tenham referenciado como "Gis" e afirmado que era transgénero).
Segundo uma das notícias que li, as agressões terão ocorrido na passada segunda-feira, numa garagem onde pernoitam habitualmente toxicodependentes, mas na terça-feira a vítima ainda estaria viva, a julgar pelas declarações dos jovens que nesse dia regressaram ao local e, tendo visto o homem no chão, o pontapearam e ouviram gemer. Ontem, contudo, estaria já morto e o medo da imputação do crime levou os menores a esconderem o corpo no poço.
Um dos menores terá já confessado a co-autoria do crime, o que leva a crer que tudo se terá desenrolado de forma muito similar ao que foi noticiado. Resta apurar as motivações dos agentes.

A propósito de uns pretéritos fenómenos, tive oportunidade de defender a criação de um tipo de crime autónomo: o crime de homofobia. Uma data de juristas caiu-me em cima: Tenha juízo, menina! A homofobia já está prevista no Código nas agravantes que já lá existem, pelo que não deve ser autonomizada!, diziam uns, A homofobia não existe, é uma duplicação de conceitos!, bradavam outros, O facto de alguém ser homo, bi ou transexual não leva ninguém a desenvolver um especial ódio por essa pessoa!, atalhavam os mais ingénuos, Os gays precisam tanto de atenção que já não sabem que mais inventar!, li eu aqui e ali... Hoje, todavia, o coordenador da Unidade de Missão para a Reforma Penal, Rui Pereira, admitiu que o ódio aos homossexuais, ou homofobia, poderá, no âmbito da actual revisão do Código Penal, ser integrada no elenco previsto expressamente na lei de circunstâncias que agravam os crimes (DN). Não é a criação do tipo autónomo, como eu defendi, mas é, pelo menos, o reconhecimento de que a lei deverá ser alterada e passar a conter uma referência literal à homofobia.

A verdade é que a homofobia pode mesmo levar alguém a matar. Não me venham dizer que os suspeitos esclareceram que não tinham intenção de matar, porque não é disso que eu estou a falar. A homofobia dos suspeitos levou-os a agredirem e insultarem frequentemente a vítima, com total desprezo por ela, humilhando-a e inferiorizando-a, provocando-lhe dores e maus tratos. Em suma, o que mói também mata: na terça-feira, a súmula dos comportamentos motivados pela homofobia resultou em morte - é disto que eu estou a falar.

O que sucedeu nesse dia não é muito diferente do que sucede todos os dias na vida de muitos homo/bissexuais e transgéneros. Pequenas tiradas, que se asemelham a ponteiros de setas que ferem, embora não matem... pequenos comentários, insultos, esgares de gozo... uma anedota aqui, uma risada acolá e as feridas vão sendo abertas.
Um dia, já não há mais sangue para jorrar e as pessoas tombam, moídas pelo ódio dos seus semelhantes. Ontem alguém tombou. Tombou alguém e tombamos nós, todos os que lutam contra o ódio, contra a ofensa, contra a agressividade, contra a indiferença, contra a complacência, contra a bonomia... Mas se algum dos suspeitos vier a sofrer sanções pelo sucedido, apenas eles as sofrerão, porque nenhum de nós gosta de se ver ao espelho quando a imagem é a de um criminoso.

Talvez esteja na hora de nos olharmos ao espelho. Talvez já vá sendo tempo de cada um de nós compreender que uma sociedade na qual se integram sujeitos que nutrem ódio pelos outros é também ela odiosa. A sociedade não é mais do que o conjunto de todos nós, embora sirva de consolo a alguns atribuir as responsabilidades a essa entidade que julgam incorpórea, a tal da "sociedade". Dá jeito, sim, mas não deixa de ser mentira.
E por ser mentira é que cada um de nós deveria sentir vergonha pelo sucedido ontem. Mas mais do que vergonha, deveríamos todos ser inquietados pela culpa, porque todos temos responsabilidade pelo sucedido ontem, pelo que sucede todos os dias na vida daqueles que são alvos dos sentimentos execráveis que somos capazes de nutrir pelo outro.

@ Gisberto/Gis tombou ontem. Hoje não se levantou, não despiu o pijama, não tomou duche nem o pequeno-almoço e muito menos leu as notícias. Mas eu, apesar de ontem ter tombado com el@, consegui fazer tudo isso hoje, como de costume. E o mesmo sucedeu convosco, que tivestes a paciência de ler este texto até aqui. Então, permiti ao menos que vos exorte: que o crime bárbaro de ontem nunca se apague das nossas memórias, nunca deixe de inquietar-nos, nunca deixe de nos lembrar que actos horrendos como os que foram praticados na segunda-feira são produto humano e estão sempre lá, no cantinho do espelho para o qual nos recusamos a olhar. Que nenhum de nós jamais ignore que poderia ter estado lá, quer do lado da vítima, quer do lado do agressor. Eu, pelo menos, sei que estive.


Na grafonola das Mentes, soa agora Balada de Outono, em evocação do Zeca Afonso, cujo 19.º aniversário da morte se cumpriu ontem. Dedico-a à memória d@ Gisberto/Gis.

Comentários:
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
 
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A nossa sociedade é realmente, odiosa.
Não concordo no entanto, com a criação de uma lei especifica para a homofobia, pois caso isso aconteça, rapidamente se vão começar a exigir punições especificas para outros crimes do género. Além disso, não acho a homofobia, diferente de outro qualquer preconceito que leve a actos discriminatórios para com um semelhante.
Defendo, no entanto, que as penas aplicáveis a qualquer tipo de discriminação, são muito leves.
Também defendo, que os jovens a partir dos 16 anos, deviam começar a ser julgados por adultos. Não se compreende porque razão podem ser responsáveis para andar de mota, mas não podem ser responsabilizados pelos seus actos. Para jovens mais novos, penso que deverá ser a gravidade do crime a ditar o tipo de julgamento que lhe será aplicado.

Boa noite.
 
Skeptikal, o argumento de que rapidamente se vão começar a exigir punições especificas para outros crimes do género para obstar à punição da homofobia não colhe.
E digo porquê: a exigência de punição de determinadas condutas não vem da ânsia das populações, mas sim da violação de bens jurídicos considerados fundamentais para a vida em sociedade. Sempre que esses bens jurídicos estejam ameaçados, não "é exigido" que se penalize, simplesmente o Estado tem o dever de penalizar.
As leis são imperfeitas, vão sendo alteradas consoante as necessidades da vida prática, pois é impossível prever todas as situações nas estatuições das normas jurídicas. Daí que se justifiquem os movimentos de descriminalização e de neocriminalização.
Neste caso, punir severamente a homofobia é uma necessidade actual, tal como foi em tempos foi necessário punir severamente o roubo. São as razões/opções de política criminal que o ditam: são cada vez mais cometidos crimes motivados pela homofobia e o Estado não pode continuar a permitir que a violação de bens jurídicos por motivos homofóbicos aconteça, considerando essa motivação semelhante a qualquer outra.

Compreendo (embora discorde) que não consideres a homofobia diferente de qualquer preconceito que leve alguém a matar. Afinal de contas, a homofobia é ela própria um preconceito. Mas também é mais do que isso: é um verdadeiro sentimento de ódio contra os homossexuais, ódio esse que poderá conduzir, mais tarde ou mais cedo, ao sentimento generalizado de eliminação dos indivíduos. Os exemplos históricos de ódios semelhantes falam por si.
A consciência disto mesmo foi o que levou o legislador a alterar, em 1998, o artigo 240.º do Código Penal. O artigo referia-se apenas discriminação racial, mas a Lei n.º 65/98 introduziu também a punição da discriminação religiosa. Então eu pergunto: não serão a discriminação racial e a discriminação religiosa iguais a qualquer preconceito? O que justificou a introdução destas especifidades?
A resposta é simples: o legislador sentiu necessidade de autonomizar estes crimes porque os acontecimentos históricos lhe fizeram ver que o ódio religioso e racial conduziou a crimes bárbaros que não se apagarão das nossas memórias - pensemos nos genocídios dos judeus e dos tutsis, ou no fundamentalismo islâmico, só para dar três exemplos.
Por outro lado, a principal vantagem da criação de um tipo autónomo seria, a meu ver, a possibilidade de qualquer pessoa, bem como associações defensoras dos direitos humanos, se constituir assistente, sem necessidade de pagamento de taxa de justiça, nos processos em que estivessem em causa crimes de homofobia (um pouco no seguimento do que a Lei n.º 20/96 prevê para os crimes cuja motivação resulte de atitude discriminatória em razão de raça ou de nacionalidade).

Quanto ao agravamento das penas, considero que nem sempre o agravamento dos limites máximo e mínimo surte o efeito desejado. Quantas vezes os crimes são severamente punidos mas, simplesmente... não se pune? E não se pune porque não se investiga, não se acusa, não se apresenta queixa, não se inicia o procedimento criminal ou não se tomam as devidas cautelas para uma eficaz recolha de elementos de prova?
No meu ponto de vista, é muito mais eficaz a sensibilização das pessoas para a necessidade de denunciarem estes crimes do que propriamente agravação das penas mas, mais uma vez, a política criminal é que apontará os critérios para definir as molduras penais.

Quanto à punição dos jovens maiores de 16 anos como adultos, estamos em completo desacordo. Considero o Regime Especial vigente uma das poucas boas produções legislativas do nosso país e penso que os critérios que devem presidir à punição dos jovens imputáveis são similares aos princípios e regras do direito reeducador. O essencial é ressoacializar os delinquentes e prevenir a criminalidade, e não propriamente transformar o Estado de Direito democrático num "Estado do Cacete". Os jovens precisam de um tratmento penal especializado, pois ainda se encontram no início da sua formação enquanto indivíduos.

Bom, apesar de termos algumas propostas divergentes, foi óptima esta troca de ideias. ;)
 
O problema está mesmo no principio da legislação. Aquando da penalização do ódio religioso, foi necessário especificar porque a lei anterior era especifica em relação à racial. A partir daí, foi um sucessivo especificar de novos crimes de ódio. Se em todos os artigos referentes a estes crimes, substituirmos "ódio «qualquer coisa»" por "ódio", ficamos com uma legislação mais simples. Olhando pela tua perspectiva, a existir uma especificidade legislativa aos crimes, penso que seria mais urgente olhar para a xenofobia. Se pensarmos bem, os problemas que Portugal tem neste momento com gangs rivais (não deixa de ser xenofobia) é mais premente e faz cada x's mais vitimas, apesar de normalmente só se ouvirem falar deles quando um policia é atingido.
Quando dizes "é um verdadeiro sentimento de ódio contra os homossexuais, ódio esse que poderá conduzir, mais tarde ou mais cedo, ao sentimento generalizado de eliminação dos indivíduos", também o podes dizer de qualquer ódio preconceituoso.
O que o Estado, não pode permitir, é a violação de bens juridicos, por quaisquer motivos de ódio, ou por qualquer outra razão.
Quanto ao agravamento das penas, um agravamento de pena, não quer necessariemente dizer mais tempo preso. Serviços sociais por exemplo.
Em relação aos individuos de 16 anos, posso concordar contigo no aspecto da reabilitação social, mas a responsabilidade pelos seus actos é apenas deles. Têm responsabilidade para andar de mota, mas não são responsabilizados pelos seus actos. Parece-me algo contraditório. Mas penso que este não é um assunto urgente.

E mais... um homicidio por motivos de ódio, não é nem melhor nem pior razão para matar. Um homicidio, sejam lá quais forem os motivos, é sempre um acto condenável na mesma pena. Não acredito em homicidios mais ou menos graves.

Também gosto muito destas trocas de ideias!;)

Boa noite.
 
Epah...Portugal precisa de ser mudado a todos os níveis...começando pela nossa fantástica lei...que é uma vergonha à margem de outras legislações europeias...dizem mt mal dos EUA mas em relação aos menores...age como deve ser...!
 
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