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terça-feira, 23 de dezembro de 2003

Carta Aberta à Anabela Rocha 


A propósito do post anterior, comentou a Anabela Rocha:

Mente Assumida: nada disto é para mim surpresa, desde quase o primeiro post que aqui colocaste. Confesso que foi uma das razões que me fez hesitar inicialmente em alargar as minhas experiências blogoesféricas. Tanta gente tão diferente de mim, com ideias que eu abomino (não, não vou ser mole)! No entanto, gabo-te a coragem de finalmente o expressares com toda a inteireza.
E abomino porquê? Porque penso que nos incutem sofrimentos e culpas totalmente desnessários; já basta a imperfeição dos nossos actos e amores para que soframos. Para quê acrescentar-lhe razões ontológicas, teleológicas, etc.? Já sofremos o bastante com as contas que temos de nos prestar. Quem são eles para adicionar ainda mais sofrimento? NÃO, NÃO E NÃO. Sanguessugas das misérias humanas, é o que são. Get a job! Get a life!


Reservo-me o direito de contra-argumentar, mas por uma questão de organização de espaço e de "separação das águas", chamemos-lhe assim, não no sistema de comentários, mas num post.


Minha cara Anabela Rocha,

Senti um tremendo orgulho quando li a sua primeira frase. Na minha interpretação, significa que sou uma pessoa coerente, que mantém os seus pontos de vista sempre que considere que eles são válidos e que vale a pena lutar por eles. De facto, nunca ocultei - nem, sequer, procurei fazê-lo -, desde o início deste blog, que além de lésbica, também sou de direita e católica. As frases estão espalhadas um pouco por todo o lado, desde os posts ao sistema de comentários deste blog e dos da vizinhança, passando pelos comentários que fui/vou deixando noutros blogs...

No entanto, isso nunca me impediu de

1. Criticar as actuações dos partidos de direita, incluindo o meu (ainda há dias o fiz no blog da Sara, a propósito da propaganda polí­tica que o senhor Dr. Pedro Santana Lopes tem vindo a espalhar pela cidade de Lisboa.

2. Criticar uma certa camada da comunidade lgbt, que se julga detentora de "verdades absolutas" e que passa a "vidinha" a excluir os outros: ou porque não são da mesma cor política, ou porque não professam a mesma religião, ou porque não abdicam de serem mulheres - isto é, de terem, se lhes apetecer, aparência feminina e, até, filhos - apesar de serem lésbicas, ou porque pura e simplesmente não têm condições para assumirem a sua homossexualidade e, no pleno uso dos seus direitos, decidem não o fazer, etc., etc., etc.. Os exemplos de discriminação no seio da comunidade são inúmeros.

3. Criticar aberta e declaradamente a Igreja Católica, sempre que considerei que os seus comportamentos merecia reprovação. Foi e será assim relativamente
I) à sua posição face à alteraçãoo da lei da interrupção voluntária da gravidez, porque - e isto é um dos princípios basilares do Estado de Direito (separação de poderes) - os poderes judicial e legislativo são totalmente independentes da Igreja, e há que entender, respeitar e aplicar isso, doa a quem doer, ainda que implique a perda de privilégios ou de status quo;
II) face ao uso de preservativo (já aqui apelei à importância da prática de sexo seguro e à  necessidade de educar as populações no sentido não de punir os seus comportamentos, mas de os alertar para o perigo da sua prática);
III) face à homossexualidade (mais adiante referir-me-ei detalhadamente a este ponto)
IV) e a muitos outros assuntos, que não importa agora enumerar (os principais estão referidos).

Posto isto, algumas clarificações.
Disse-o no post anterior e volto a repeti-lo: para se integrar/compreender qualquer fenómeno de massas como a Igreja Católica(e até mesmo a comunidade lgbt) é necessário ter muito sentido crí­tico. E eu tenho-o. Daí­ que tenha o discernimento e a capacidade de apontar problemas no seio da Igreja Católica. Referi-me, inclusivamente, ao lobby constante que a Igreja Católica faz ao poder polí­tico, cuja última demonstração foi o ridículo (a meu ver) abaixo-assinado para a inclusão da referência à tradição judaico-cristã da Europa no texto da Constituição Europeia. A Anabela desconhece a minha verdadeira identidade, mas posso garantir-lhe que o meu nome não está e nunca estará entre os dos mais de 55 mil portugueses que subscreveram o documento.
E, tal como fiz relativamente a este assunto, fi-lo a muitos outros. Seguem-se alguns exemplos.
a) Neste blog foi focada a intolerabilidade de um documento como o que o senhor Cardeal Ratzinger divulgou há alguns meses, pela carga homofóbica que contém (pela mão da Assumida Mente, é certo, mas eu revelei o meu completo acordo com o que ela escreveu).
b) Digo no post que deu origem ao seu comentário que não creio no dogma da infalibilidade do Papa, pelo que me permito discordar de muitas das suas posições - divórcio, adopção, eutanásia e, evidentemente, homossexualidade. Ou seja, Anabela, lá porque sou católica e não tenho receio de o afirmar (ainda que já soubesse que nenhum dos meu "vizinhos" o é), isso não significa que aceite tudo o que a minha Igreja impõe.

A ver se nos entendemos.
Acredito profundamente na religião em si, nos princí­pios, nos valores, mas aponto o dedo à Instituição e à Doutrina, sempre que considero que não é justa. E não é justa, certamente, no que diz respeito à homossexualidade. Vejamos.
a) Utiliza termos profundamente infelizes e que revelam ignorância, tais como "perversão grave", "pecado contra a natureza", "pecado da carne", etc..
b) Apela à castidade dos homossexuais, isto é, de pessoas que têm todo o direito de não se subjugarem a ela. Não segui nenhum sacramento que me impusesse o celibato, porque haveria de não viver a minha vida em plenitude, incluindo a parte sexual, abdicando da minha felicidade?
c) Apela à compaixão e ao respeito por parte dos que não o são, perante os que são homossexuais. Compaixão que se deve a quê? Que se explica como? Através da noção de pecado.
d) Porque a Igreja Católica classifica como pecado a homossexualidade.

E é aqui, precisamente, que é necessário esclarecer uma coisa: nem eu nem a Assumida Mente vemos a homossexualidade como um pecado. Para nós, a homossexualidade é algo de tão natural como a heterossexualidade, como ser branco, como ser negro, como ser alto, baixo, magro ou gordo. Não defendemos que seja contranatura, muito pelo contrário - está na nossa natureza (na minha e na da Assumida Mente) que sejamos homossexuais, porque assim somos desde que nos recordamos de sermos nós, desde que despertamos para o mundo dos afectos e da sexualidade.
Logo, o que acontece é que, no que concerne é nossa sexualidade, não aceitamos o jugo que a Igreja Católica impõe aos homossexuais. Não o aceitamos, precisamente, porque à luz dos valores que a Igreja tem na sua génese - e que são, sinteticamente, os do Amor, da Compreensão, do Bem, da Entrega, da Entre-Ajuda, do Respeito por si mesmo e pelo outro - ele não se nos afigura razoável. Como há-de um Deus Pai misericordioso, que me criou homossexual, julgar-me por este mesmo facto? Sou como sou porque Deus me fez assim. A minha sexualidade não está na minha disposição, não compreende o meu livre-arbítrio. Logo, se é algo que me é intrínseco, não poderei abdicar dela, sob pena de ser infeliz - e Deus não quer ver nenhum dos Seus filhos infelizes! Deus é Amor - e Amor é sinónimo de Felicidade e não de sofrimento, castração, tortura e comiseração. E o que a Igreja Católica quer impôr aos homossexuais é este sofrimento, esta castração, a tortura e a comiseração. Rejeito veementemente esta perspectiva da Igreja Católica. Rejeito-a porque de outra forma nunca poderia cumprir o plano de felicidade que Deus traçou para mim.

No entanto, cara Anabela, isso não significa que encare este aspecto como contaminante, aceitemos esta expressão, de toda a actividade da Igreja Católica. Encontro nela muitos aspectos positivos, que superam em larga medida os negativos. Quando assim deixar de ser (espero que esse dia nunca chegue), então aí­ sim, talvez mude de religião ou me torne, simplesmente, agnóstica. Por isso tenho um imenso respeito por todos aqueles que professam religiões diferentes da minha, por todos os que, sendo católicos, um dia ousaram mudar de religião e tentar ser mais felizes e mais realizados noutras comunidades. Porque no fundo, todos têm em mente fazer o Bem e atingir a realização pessoal e colectiva dos indivíduos, servindo ao seu Deus, quer lhe chamem Javé, Jeová, Alá ou Buda. Porque o meu Deus não tem um nome - tens muitos nomes. Porque ele não se manifesta só pela boca dos Papas, dos cardeais, dos bispos e dos padres católicos, mas sim pela boca de todos os que praticam o Bem e contribuem para a Felicidade dos outros. Porque ele não habita simplesmente na Igreja Católica, mas sim em todas as Igrejas e na casa de todos nós, desde que sejamos capazes de o receber. E ele pode entrar sob a forma de um moribundo, de um sem-abrigo, de um amigo que está triste, de alguém que sofreu uma perda, de um filho recém nascido, de um pai inválido. Pode entrar através de um raio de sol que alegra as nossas manhãs.

É neste Deus que eu creio - e aprendi a vê-lo assim no seio de uma Igreja que, em muitos aspectos, é lúcida o suficiente para o proclamar. O Papa João Paulo II ficará conhecido na história mundial como o Papa mais ecuménico de sempre, porque, como nenhum seu antecessor fez, apelou para a união de todas as religiões e todos os credos em volta de um só valor - o Bem/Felicidade do Homem. Porque, contrariamente àquela que é a convicção de muitos - e, pelo que li, também a sua - a Igreja Católica já deu mostras de querer mudar certos aspectos da sua conduta. Ponto de viragem foi, indubitavelmente, o momento em que João Paulo II afirmou na Praçaa de São Pedro que pedia perdão a todos os que foram vítimas da Santa Inquisição, uma das (sim, infelizmente, não a única) páginas mais negras da história desta instituição. Muito provavelmente, nenhum de nós sabe que é descendente de uma vítima da Inquisição, pelo que nenhum de nós aceitou individualmente aquele pedido de perdão. Mas nenhum de nós, no entanto, deixou de reconhecer que o Papa demonstrou uma coragem admirável ao proferir aquelas palavras.
É essa coragem que eu anseio ver no que diz respeito aos homossexuais. E é, também, por isso, que não desistirei de lutar no seio da própria Igreja Católica, até que um dia ela admita que está errada. É a isto que eu também chamo "evangelizar".

Não aceito imposaições de sofrimento nem de abdicação da minha sexualidade, mais uma vez, repito, porque não está nas minhas mãos deixar de ser lésbica. Não classifico de outro modo senão como contranatura - agora sim - o facto de os homossexuais se remeterem à castidade, por isso, não a aceito também. Proclamo o respeito pelo ser que sou enquanto obra de Deus, criada à sua imagem, pelo que repudio a comiseração dos meus semelhantes. A consumação de um amor tão puro e verdadeiro como o que sinto pela Assumida Mente não pode, de forma alguma, ser pecado, pelo que me recuso a classificá-lo de tal forma e a penitenciar-me pelo facto de ser feliz.


A missão de alguns de nós é o activismo. A sua missão, Anabela, talvez o activismo social. A minha, poderá muito bem ser o activismo religioso. Nenhuma de nós detém verdades absolutas. Apenas perpectivas diferentes. Eu entendo que é assim que se combate o erro - através da clarificação, pelo que tento abrir os olhos e os ouvidos dos que, tal como eu, são católicos. É uma escolha que faço, esta sim, livre e conscientemente. E lutarei por ela, com coerência, dignidade e honestidade, como faço com todos os meus ideiais. Enquanto valer a pena.


Um abraço,

Mente Assumida

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