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sexta-feira, 15 de setembro de 2006

A língua como ela é 

Quando se tem companhia para jantar, habituamo-nos a conversar sobre os dias, o trabalho, a saúde e o mais que vier. A televisão passa, então, a ser apenas uma peça de mobiliário a que damos pouco uso. Tudo o que precisamos saber não está na caixinha que mudou o mundo, mas na boca, no olhar e no gesticular da nossa companhia.
Quando se tem companhia para jantar, come-se com prazer, mais devagar, degusta-se melhor a comida, o vinho, palpam-se os tecidos da toalha e do guardanapo. Apetece, por isso, a palavra partilhada, mesmo que o assunto possa parecer desinteressante.
Quando se tem compahia para jantar, todos os assuntos são interessantes. Até o silêncio se torna leve, mais a propósito, quando se une à satisfação de ver comer com gosto quem nos acompanha.

Quando não se tem companhia para jantar, liga-se a televisão, ansiando que o silêncio de todas as horas seja preenchido por som, não importa qual, desde que nos alivie dos ombros a carga penosa que é... não ter companhia para jantar.
Quem me conhece, sabe-o bem: se há coisa que sempre detestei foi comer sozinha. Apavora-me a ideia. Perco o apetite. Prefiro ficar a trabalhar e saltar a refeição, mas a saúde exige-me que coma a horas certas e, por isso, hoje jantei sozinha.

A cortar o silêncio, a televisão. O José Alberto Carvalho apresentava o telejornal da RTP. Enquanto ele falava, eu tentava descortinar o que terá passado pela cabeça de quem veste os pivots ao escolher o blaser piroso que o rapaz envergava. Isto para dizer que não estava a ligar nenhuma às notícias. Porém, a coisa mudou de figura (aqui está uma expressão de que gosto) quando o ouvi dizer que morreu a jornalista e escritora italiana Oriana Fallaci, vítima de cancro.
«Vítima de cancro», repeti para mim mesma. O José Alberto Carvalho não disse «vítima de doença prolongada», disse «vítima de cancro». Há coisas curiosas. Ainda há uns dias comentava com um amigo esta necessidade de os portugueses utilizarem eufemismos para expressarem as realidades mais duras, digamos assim. Não sei se vos acontece o mesmo, mas é frequente eu ouvir coisas do género: «O que V. Exa. está a dizer é uma absoluta inverdade.» quando o que se quer dizer é «O que V. Exa. está a dizer é uma grandessíssima mentira.» (foi a propósito desta que começou a conversa dos eufemismos); «O arguido está detido há quatro meses.» quando, na prática, o tipo está é preso; «A Teresa está com uns quilinhos a mais, está fortezinha.» quando, na verdade, o que a Teresa está é gorda; «Peço-lhe que faça silêncio.» para não dizer, numa palavra, «Cale-se!».
Dizemos «falecer» porque temos um medo terrível da palavra «morte» e suas derivações. Dizemos «eu e fulan@ estamos separad@s» porque não queremos sequer ousar dizer que «o nosso amor acabou». Quando nos perguntam se estamos bem, respondemos «Está tudo bem, sim.», quando na verdade pior não poderia estar.
Somos uns artistas da pintura, nós, sempre de pincel na mão dispostos a dar outras cores à verdade. Por isso mesmo adquirimos este hábito de dizer «doença prolongada» em vez de «cancro», algo que sempre achei caricato. Confesso que estremeço perante a palavra «cancro». É, talvez, a doença que mais temo, a seguir à minha famosa "pancada" com a paraplegia. Mas um cancro, mesmo sendo uma doença prolongada, não deixa de ter nome. E não é por nos recusarmos ou evitarmos dizer o nome da doença que ela deixa de matar (quase estive tentada a escrever «ceifar vidas»).

Voltando à notícia e ao José Alberto Carvalho. Pensei que seria mais estranho ouvi-lo dizer "a" palavra. Não foi. Foi banal. Cancro, cancro, cancro. Estremeço perante a palavra, mas digo-a. Enfrento-a. Já não fujo nem recuo. O jornalismo português também não. Não há palavras de primeira e de segunda, daquelas que são a verdade e daquelas que são a "pintura". No telejornal da RTP já se fala a língua portuguesa como ela é.
Por curiosidade, pesquisei na internet os principais sites noticiosos, para averiguar se os novos ventos só sopram lá para os lados do Monte da Virgem. Constatei, com alguma satisfação, que não. O Correio da Manhã, o Diário Digital, o PÚBLICO, o Portugal Diário e a EuroNews utilizam todos a expressão «cancro» para identificar a causa da morte de Fallaci. Já a Rádio Renascença utiliza a expressão «doença incurável» e a TSF Online continua a alinhar na «doença prolongada».
Mas atenção: é necessário conter o entusiasmo. É que não é alheio a isto o facto de todas essas notícias terem como fonte a Ansa, uma agência italiana. Quer-me parecer que se fosse a Lusa, não haveria sequer espaço para entusiasmo. Não pensem que digo isto por má-língua. Reparem como a Ansa não teve qualquer tipo de problema em especificar que a causa da morte foi «cancro pulmonar», o que nenhum serviço noticioso português teve a coragem de fazer...

Ainda a propósito destas coisas de dizer o que tem de ser dito, um programa semanal acerca de como deve ser dito estreou hoje, também na RTP, logo a seguir ao telejornal. Chama-se Cuidado Com a Língua e conta com a sonorização da Maria Flor Pedroso (cuja voz eu acho tremendamente sexy) e apresentação do Diogo Infante, que cada dia está mais bem-apessoado (eufemismo para «podre de bom», entenda-se). :)

E agora que o post já vai longo, reparo que falei de uma data de coisas diferentes! Suponho que isso se deva ao facto de hoje só ter esta tela com quem conversar. Quero acreditar que é algo que só acontece quando não se tem companhia para jantar (eufemismo para «quando se está sozinh@»)...

Quer tenham ou não companhia, desejo-vos a tod@s uma excelente noite e um grande fim-de-semana... ;)

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