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quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

Obituários 

A primeira reacção é sempre de estranheza. As pessoas nunca sabem muito bem como reagir. Voltam as cabeças, retorcem-se nas cadeiras, esticam os pescoços para espreitar. Há quem tenha a atitude inteligente de não tecer comentários, há quem não resista a criticar, há quem tente fazer passar o pormenor despercebido.

Gosto de obituários.
Gosto de pedir o café e o jornal, sentar-me na mesa encostada à parede e abrir o diário nas páginas da necrologia. Depois detenho-me a ver as fotografias, a ler os nomes, a ver as datas de nascimento e morte, a calcular as idades. Na maioria dos casos, leio os avisos, vejo quem os assina, reparo na agência funerária que prestou o serviço.
Coisas curiosas, as funerárias. São agências (assim se dizem) que tratam de lavar, vestir e preparar o cadáver, que asseguram o transporte até ao cemitério e que se certificam que todas as flores ficam bem arrumadinhas, uns ramos ao lado dos outros, sobre o túmulo do defunto.
Geralmente, as funerárias têm nomes de família ou designações ligadas à terra. A publicidade escolhida para figurar nas Páginas Amarelas impressas é particularmente peculiar. Suponho que ninguém ou muito poucas pessoas se terão dado ao trabalho de reparar nisso. Manias.
Regra geral, o anúncio nunca ocupa menos de um quarto de página. A letras grandes, a designação: "Agência Funerária Esteves". Em destaque, o nome do fundador. Mais abaixo, o nome dos gerentes, com a referência de que são filhos ou netos daquele, claro, que isto das funerárias é mais do que um negócio, é uma tradição familiar. Em destaque pode ler-se que foi "fundada em 1961".
O mais fascinante, contudo, são as semelhanças entre o grafismo destes anúncios e o dos avisos que se publicam nos jornais ou afixam nos cafés, nas lojas, nas portas das igrejas. E não falo só da caixa negra e da típica cruz ao lado do nome. Refiro-me aqui, especialmente, ao pormenor da fotografia: não há anúncio nas Páginas Amarelas que se preze que não tenha a fotografia do fundador, no mínimo. E assim ficamos todos a saber que aquele homem gordo, de bigode fininho e testa suada é o "senhor Albino Esteves", fundador da "Agência Funerária Esteves" no ido ano de "1961".

Gosto de visitar cemitérios.
Longe da sensação de temor ou de arrepio, sinto nos terrenos dos cemitérios paz. Porque os que lá repousam já não travam lutas, porque só no plano terreno existe a disputa. Com o mesmo cuidado olho para as fotografias dos túmulos e jazigos, leio os nomes e as datas e as inscrições latinas. Aliás, dizem alguns autores que a palavra «cadáver» tem origem etimológica numa inscrição que os romanos supostamente escreveriam nos túmulos: caro data vermibus ("carne dada aos vermes"). Curiosamente, a inscrição nunca foi encontrada.

Gosto de elogios fúnebres.
Os mortos são sempre bons, depois de mortos - já não fazem mal a ninguém. Os jovens são sempre uma "dor maior", os velhos "seguiram o curso da vida", os outros "deixam família" ou "eram cidadãos exemplares". Ou não servissem os elogios para elogiar, pois claro.

Gosto de cerimónias fúnebres.
Gosto de viajar pelos acordes da música, grave, lenta... de me perder nas notas do órgão, de me enternecer com as cadências, com as dissonâncias... Gosto de missas de Requiem, do Tuba mirum*. Perco-me por entre os rostos sulcados pelas lágrimas, por entre os suspiros. Sustenho a respiração nas súplicas das orações, no adejar dos paramentos, nos passos entre o altar e o ambão.

Gosto de obituários.
Os rostos, alinhados quase sempre à esquerda do nome, eternizados numa página de jornal. Gosto do estilo literário, carregado de adjectivos consternados, como "saudoso", "finado", "ilustre", "muito amado", "estimado", "distinto", "querido"... Gosto de me deter nos olhares das fotografias, nos nomes próprios, nos sobrenomes... Gosto de saber em que cemitérios são sepultados os que morrem, em que igrejas serão lembrados, em que terras serão chorados... Gosto de ler cuidadosamente os agradecimentos das famílias...
Caso as edições online dos jornais disponibilizassem a secção de necrologia, eu seria poupada aos olhares de agravo dos que beberricam o café enquanto espreitam a mesa dos outros, na ânsia de encontrarem algo que lhes entretenha os minutos de uma existência vazia. Talvez esses não compreendam que os vivos têm a obrigação de olhar para os mortos, o dever de se deterem nas suas fotografias e de lembrarem os seus nomes. Os mortos não são só cadáveres que se transformarão em matéria orgânica por acção dos vermes. São memórias. Memórias de pessoas que existiram, que tiveram um significado para alguém, que cumpriram um caminho, quer tenha sido ténue, tortuoso ou dignificante. Que preencheram mais uma linha da história da humanindade. E que por isso merecem mais do que uma simples impressão do seu rosto num jornal. Merecem, pelo menos, que essa impressão seja lida, que os seus túmulos sejam visitados e limpos, que os seus nomes sejam invocados e que, na medida do possível, as gerações dos que eles geraram os recordem. Merecem, ao menos, que lhes façamos obituários.


* Tuba mirum spargens sonum / per sepulcra regionum / coget omnes ante thronum. / Mors stupebit et natura / cum resurget creatura / judicanti responsura. / Liber scriptus proferetur / in quo totumcontinetur / unde mundus judicetor. / Judex ergo cum sedebit quidquid latet apparebit; / ni inultum remanebit.
O som maravilhoso da trompeta, / retumbando por entre os sepulcros / reunirá todos diante do trono. / A natureza e a morte se assombrarão / quando ressuscitarem as criaturas / para responderem diante do Juiz. / E por aquele profético livro / no qual tudo está contido / o mundo será julgado. / Quando o Juiz se sentar no trono / todo o oculto sairá da luz; / nada ficará impune.

Comentários:
TA FIXE.........WWE 4EVER.
 
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