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domingo, 8 de fevereiro de 2004

Conceitos 


A tradição…

Domingo, uma da tarde. O cheiro a carne assada invade todos os cantos da sala. É assim desde que se conhece. O menu do almoço de Domingo é sempre aquela carne assada com batatas assadas e arroz de forno. Uma tradição que se mantém, já quase transformada em dogma. Não interessa que há muito se tenha cansado daqueles temperos, da carne seca… ou que estejam quase quarenta graus lá fora e tudo o que lhe apeteça seja uma salada fresca… a tradição é para cumprir, sem questionar – e a travessa já lá está na mesa… A mesma travessa… a mesma mesa…
Senta-se no seu lugar de sempre. Serve-se e diz qualquer coisa à irmã, do outro lado da mesa, que a faz soltar uma gargalhada sonora. O pai franze o sobrolho irritado: “silêncio que estou a ouvir isto”… Como sempre…
E “isto” pode ser desde o Telejornal, à Operação Triunfo, passando pelas corridas de Fórmula 1 ou os comentários da BBC Vida Selvagem… Qualquer coisa que a televisão esteja a debitar … Desde que se conhece que é assim: as refeições são passadas a ver televisão, por muito pouco interesse que o programa tenha, por muito importante que seja o assunto a debater à mesa.
O diálogo há muito desaparecera do dicionário daquela casa. Pai e mãe, casados há mais de trinta anos, como manda a tradição… à pressa para esconder uma gravidez antecipada… há muito esqueceram o fogo que os juntara na noite da concepção daquele filho… Talvez se tivessem amado nos primeiros tempos… talvez tivessem sido felizes… Não se recorda. Sempre se lembra de ter visto a mãe assim, como hoje, submissa… e o pai ausente, silencioso, num monólogo constante com a televisão…
Como filho mais velho aprendeu a brincar à imagem dos pais… em silêncio… fechado no seu mundo. Às vezes ficava a olhar, da janela de sua casa, os miúdos lá fora a jogarem futebol… Ainda arriscava: “ó mãe, posso ir brincar com os vizinhos?”… A resposta era sempre o início de um longo jogo: “vai pedir ao teu pai!”… e lá ia ele: “a tua mãe é que sabe, mas eu acho que não deves ir”… E ele ali ficava, io-io tonto no meio de uma guerra que não compreendia…
Talvez tenha sido por isso que se sentiu tão feliz com o nascimento da irmã. Finalmente alguém com quem brincar, com quem partilhar os silêncios e as gargalhadas, com quem se entreter nos intervalos dos almoços e jantares, em que a televisão sempre imperava… Alguém com quem, mais tarde, começou a poder partilhar a tristeza daquela casa onde ninguém falava com ninguém… E ambos tentaram mudar as coisas… até descobrirem que é impossível entrar em corações fechados…
... O almoço acaba depressa… Quem come sem falar come a correr… Depressa se levantam da mesa e fogem dali… para os livros, para o computador ou para amigos que os pais não conhecem nem de nome… A mãe ali fica, como sempre, entre tachos e panelas… mais tarde agarrar-se-á à tábua e ao ferro de passar, ou ao pó que não existe… inventando ocupações que não tem, para não parar e perceber no vazio em que a sua vida há muito se transformou… O pai ficará pelo sofá da sala, entre os jornais e a televisão… nos infindáveis monólogos televisivos de sempre…
Mais tarde, à hora do jantar, a família voltará a reunir-se… quatro desconhecidos em torno de uma mesa… devorando em silêncio o que o prato tiver para lhes oferecer… cada um guardando para si, os seus sonhos, anseios e alegrias… em garfadas isoladas… sozinhas… os quatro… a família tradicional: o pai, a mãe e os dois filhos…

… Reinvente-se a tradição!!!


Domingo, uma da tarde. Hoje o menu é especial. Como o é todos os domingos… Gosta de “caprichar” aos domingos. Os “miúdos” vêm almoçar a casa e a família toda reunida merece um repasto especial.
A casa assim com tanta gente ganha vida própria. A ânsia por falar, contar, rir e conversar é tanta que as palavras se atropelam… Finalmente a travessa vem para a mesa e um silêncio momentâneo de admiração instala-se… “Mmmm, já te disse que és provavelmente a melhor cozinheira do mundo?”. Era assim desde sempre… Os trinta anos de vida em comum, longe de terem apagado a chama fizeram aumentar o amor, carinho e admiração dos primeiros tempos… E nunca perdiam uma oportunidade para trocar entre si pequenos afagos, como este.
… “Por acaso, o João passa a vida a dizer-me que por muito bem que eu cozinhe os meus cozinhados nunca chegarão aos calcanhares da comida cá de casa!”… E o assunto está lançado para o resto da refeição. Maria, a mulher de João, o filho mais velho do casal, conta como o “menino mimado”, como se refere ao marido, passa a vida a falar do arroz da mãe e do bacalhau com natas da mãe e de mais não sei o quê… Joana, a filha mais nova, aproveita logo para dizer ao namorado que não julgue que os dotes gastronómicos são genéticos… porque quando se casarem os cozinhados vão ser feitos a meias: “ah pois é, meu menino… e se começas a dizer ‘ó querida cozinha tudo que cozinhas muito melhor que eu’, começo a pôr uns temperos tão esquisitos que nunca mais me queres perto dos tachos!”… E o almoço lá continua alegre e divertido… Há espaço para todas as conversas, para todos os assuntos… para todas as pessoas…
A vida não foi sempre fácil… Lutar por aquele amor foi complicado… Muito… Lutar por aquela vida, também… Lutar por aqueles filhos… indescritível… Ao princípio ainda pensaram adoptar… Perante tanta burocracia e papelada optaram pela inseminação artificial… O amor é o mesmo independentemente do meio.
As crianças lá nasceram, fortes, saudáveis e muito acarinhadas… é assim com todos os filhos muito desejados… É claro que a educação não foi fácil… Não foram simples as respostas às suas perguntas e às perguntas/provocações que traziam de fora… A todas foram conseguindo responder sempre com calma, paciência, tolerância e muito amor… O objectivo era fazer deles duas pessoas boas e bem formadas… Duas pessoas conscientes e inteligentes, capazes de saberem, perante todas as situações da vida, tomar o rumo certo, o melhor para si e para os outros, aquele que os faria felizes… Agora, ao fim de trinta anos, sentiam que estavam a conseguir cumprir bem a sua missão!
Os filhos agora já crescidos estavam “encaminhados”… O João, o “menino mimado”, inteligente, astuto e com um humor corrosivo, médico a acabar a especialidade em cirurgia, casara-se há dois anos e esperava agora uma menina. A Joana, aérea, despistada e sonhadora, mas meiga, ternurenta e muito lutadora, acabara o curso de Música há um ano e tinha sido logo convidada a dar aulas na Faculdade… preparava-se agora para casar, “mas com calma que ainda sou nova e tenho a vida toda pela frente”.
... O almoço prolongava-se sempre pela tarde toda… Depois lá iam ficando, por ali… Ou então saíam os seis, a dar uma volta pela Baixa, ou em passeios pausados à beira rio… E como lhes sabiam bem aqueles fins de tarde, sentadas no banco de jardim, observando os seus “rebentos” passear de cara feliz, olhando babadas a sua família: duas mulheres e os seus dois filhos… com um neto a caminho…

Ponderem-se os discursos…

Se pensam que estes textos são mais do que duas meras descrições inofensivas de duas famílias distintas, então pensam muito bem!
Bem sei que venho tarde, e o debate sobre o assunto já fez correr muita e muito acertada tinta lá para o início da semana… Mas há definitivamente coisas que não consigo ouvir/ler sem ficar indiferente, calada, sem reacção.
Penso que estes textos, analisados e confrontados, permitirão tirar as devidas conclusões a quem a elas estiver disposto.
Gostava apenas de reforçar dois ou três pontos. Bem sei que vou repetir muitos dos argumentos esgrimidos na blogaysfera, mas sinceramente penso que este é um daqueles assuntos em que, por muito que digamos, nunca diremos vezes demais… Assim sendo, cá vai:

1. Se o conceito tradicional de família é aquele que se materializa “na união estável e leal de um homem e uma mulher”, quantas famílias tradicionais preenchem verdadeiramente este conceito?... Em quantas famílias tradicionais a união entre o homem e a mulher é estável?... E leal?... É verdade que nunca saberemos, porque é impossível perscrutarmos o íntimo de todas as famílias… Mas ou tenho muito azar com as pessoas que conheço, ou não serão tantas quantas seria desejável para se alegar que o conceito é correcto e exprime inequivocamente a realidade!!!... Sem dúvida que ele existe, em termos ideais, há vários anos… mas existirá na prática tal como é descrito?

2. Desejar que o conceito jurídico (porque é disso que se trata) de família seja alargado às famílias de casais homossexuais não coloca em causa qualquer conceito, nem sequer a forma como qualquer cidadão rege a sua vida, ou constitui a sua família. Simplesmente se regula juridicamente uma realidade que na prática já existe (pasme-se!) há milhares de anos! "Ubi societas ibi ius"… é simples... é milenar!

3. Não consigo perceber como é que se aceita que os casais homossexuais podem ser reconhecidos como casais, mas não se aceita que possam invocar o direito a casarem-se… Agora sou eu que estou com os conceitos confundidos… Ou será aqui o meu espírito latinista que não me consegue fazer esquecer que os étimos são exactamente os mesmos?...

4. E os conceitos continuem a confundir-se-me quando leio que as relações homossexuais são “novas realidades”... Qual é afinal o conceito de novo, se temos notícias de relações homossexuais desde… desde… alguém sabe desde quando?... É que a minha memória histórica só me leva até à Grécia Antiga!!!

5. E quando finalmente leio no discurso: “isto por uma razão muito simples”, penso: “ok, vão seguir-se os argumentos válidos, insusceptíveis de críticas e assertivos que me vão fazer pensar duas vezes quando arguir que eu e a minha mulher somos uma família”… e aqui vão os argumentos de peso: “a família, enquanto união de um homem e uma mulher, é, para mim, a célula fundamental da sociedade e, deve ser a partir dela que se deve fomentar a descendência”… Pois, a célula… o átomo… o princípio dos princípios, para mim que sou católica, é o amor: o amor que tudo cria, o amor que tudo gera, o amor que tudo move… o amor sim deve ser a célula da sociedade, o amor sim, deve fomentar a descendência!!!... E curioso, como em todo o texto nunca se fala de amor… Sintomático!?

6. E a pérola final… “a formação e educação de uma criança deverá ser concedida, quanto a mim, apenas aos casais heterossexuais, pois uma criança que cresça num ambiente dominado pela homossexualidade terá sempre dificuldade (nem que seja inconscientemente) de descobrir e exteriorizar a sua tendência sexual, já para não falar da falta que lhe fará a figura do pai ou da mãe.”… E eu que nasci e cresci no seio de uma família heterossexual e (há que admiti-lo) homofóbica, pergunto-me onde terei eu ido desencantar a minha "tendência sexual"… e pergunto como é possível que tantos dos meus amigos filhos de casais divorciados, que nunca conviveram (maioritariamente) com o pai se tenham transformado nas pessoas felizes e bem formadas que hoje são!...

Pena que discursos como estes se fiquem quase sempre por um post, por uma farpa lançada, sem réplica à contestação… Que falta faz um debate aberto, esclarecido e fundamentado sobre todas estas questões…
Como me ferve o sangue nas veias quando leio coisas assim!

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