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quinta-feira, 30 de outubro de 2003

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e a Lei... Memórias dos tempos idos! 


Como já devem ter reparado adoro escrever… muito!... Não fui de facto bafejada com uma dose, por muito mínima que fosse, de poder de síntese… Em nada: nem na escrita, nem no amor, nem na vida!... Gosto de escrever ao sabor do pensamento, sem qualquer pré-meditação, sem saber que palavra se segue à outra… Gosto de me transcender através da escrita, de ser surpreendida pelas vírgulas, reticências e exclamações que me vão saindo dos dedos, como se eu fosse uma mera espectadora daquilo que escrevo…

Mas não é assim quando o assunto é jurídico. Aí, também as palavras se vestem de fato e gravata e as reticências e exclamações dão lugar ao formalismo das frases curtas e dos pontos finais. Sei que as questões jurídicas, como todas as questões sérias em geral, também podem merecer um tratamento irónico, divertido e não menos incisivo por isso, no entanto, por defeito meu não sei discutir de outro modo estes assuntos.

Por isso, aviso já quem me leia que o post que se segue será chato, sério, cinzento e sisudo. Só o escrevo porque simplesmente não posso, por imposição da consciência, ficar indiferente à questão. Por isso cá vai:

A – DOS FACTOS

1. O Público noticiou há dias que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu um acórdão em que se pronuncia sobre a homossexualidade nos seguintes termos:

"São substancialmente mais traumatizantes por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental, intelectual e social futuro da vítima (…) É mais livre e prematuro o consentimento de adolescentes para a a prática de actos heterossexuais, sendo mais tardio o processo genético de formação de vontade de adesão dos adolescentes para a prática de actos homossexuais".

B – DAS QUESTÕES QUE AQUI SE COLOCAM

1. O acórdão assim proferido deverá ser analisado de duas perspectivas:

1.1. Da perspectiva substancial, o que significa um cuidado estudo das afirmações efectuadas nessa sede;
1.2. Da perspectiva legislativa, a exigir uma reflexão sobre o regime legal que terá servido de ponto de partida a tal acórdão.

C – DAS AFIRMAÇÕES PROFERIDAS NO ACÓRDÃO

1. Quanto às afirmações proferidas no acórdão em análise sobre a homossexualidade, a mera remissão para o comunicado à imprensa que as associações lgbt nacionais prontamente emitiram, será suficiente para demonstrar como enfermam de vários vícios.

2. Haverá apenas a acrescentar que os juízes nacionais estão sempre obrigados a fundamentar as suas decisões em provas, jurisprudência ou doutrina e, enquanto não tivermos conhecimento de quais os documentos mobilizados pelos juízes para proferirem o acórdão (acaso terão decidido com base em algum parecer?) , não será possível indagar qual a fonte destas falácias.

D – DA LEI

1. Na origem deste acórdão e da discórdia por ele gerado está o artigo 175.º do Código Penal português onde, sob a epígrafe “Actos homossexuais com adolescentes”, se estabelece que “Quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos, ou levar a que eles sejam por este praticados com outrem, é punido com pena de prisão de 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.

2. Como facilmente se verificará, para que os pressupostos deste tipo legal de crime estejam preenchidos têm que se verificar as seguintes condições;
2.1. A existência de uma pessoa (agente) - homem ou mulher - que seja maior (actualmente, a maioridade em Portugal é alcançada aos 18 anos);
2.2. A prática de actos homossexuais de relevo (aqui o “relevo” significa uma de três coisas: penetração, coito anal ou/e sexo oral);
2.3. Que essa prática seja levada a cabo com menor entre os 14 e os 16 anos (vítima).

3. No entanto, como bem se salienta no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, sob a direcção do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (edição de Coimbra, lá está!) este artigo revela-se totalmente obsoleto, fora de época e não é, de modo algum, a forma mais adequada de se proteger o bem jurídico aqui em causa (cit.: parece seguro que o direito penal português do futuro deve caminhar no sentido de não discriminar as relações homossexuais, nomeadamente exigindo também que o agente abuse da inexperiência do menor e prevendo que o tipo legal de actos sexuais com adolescentes também seja preenchido quando o agente pratique actos sexuais de relevo que não a cópula, o coito anal ou o coito oral. Mas preferível será sempre a solução de haver um só tipo legal de crime que, não distinguindo a natureza homossexual ou heterossexual dos actos sexuais de relevo, proteja o bem jurídico que merece tutela, ou seja, o livre desenvolvimento do menor, no que à sua esfera sexual diz respeito - sublinhado nosso.).

4. Com efeito, se analisarmos as legislações europeias, verificamos que na Alemanha o crime de homosexuelle Handlugen foi revogado em 31 de Maio de 1994 e que tanto em Espanha como em França recentemente entraram em vigor novos Códigos Penais que não distinguem os actos sexuais que legitimam a criminalização em função da natureza dos mesmos, não existindo o crime de homossexualidade com menores.

5. É óbvio que não está aqui a defender que deixe de ser considerado crime aquela situação em que o velhote alicia o adolescente para a prática de actos sexuais em troca de bombons, rebuçados ou bilhetes para jogos de futebol e consuma o acto sexual de relevo, uma vez que, sendo a moldura penal inferior a três anos, a tentativa não é punível…

6. Sem dúvida, essas situações em que os maiores abusam da inexperiência destes jovens (devendo aqui ler-se inexperiência não apenas como inexperiência sexual mas no sentido lato de uma ingenuidade/puerilidade que os jovens não são obrigados a perder mal passem a barreira dos 14).

7. Errado não é, portanto que o Código Penal português puna situações em que maiores tentam ludibriar e levam menores a praticarem actos sexuais de relevo consigo… Errado é “apenas” que se discriminem aqui os homossexuais, gerando-se situações que, levadas ao extremo, poderão significar que os pais de um miúdo de 15 anos que namore com um de 18, acusem este de cometer o crime de actos homossexuais com adolescentes, apesar de ambos se amarem e ter sido, inclusivamente, o rapaz de 15 anos a cativar o de 18!

8. Em 1997, quando se discutiam as alterações ao Código Penal português, a Proposta de Lei 80/VII de 1997 vinha exigir a distinção entre homossexuais e heterossexuais, isto é, entre os pressupostos legais previstos nos artigos 175.º e 174.º, respectivamente, passando a exigir-se também para a prática dos actos homossexuais com adolescentes que se estivesse efectivamente a “abusar da inexperiência do adolescente". No entanto, tal proposta não foi aprovada.

9. E assim continuamos com uma lei completamente discriminatória…

10. … E violadora de um dos princípios basilares da União Europeia (art. 13.º do Tratado da C.E.E.)…

11. … Até que o governo decida alterar a legislação neste ponto específico… ou as associações de homossexuais se lancem na luta pela abolição deste artigo, de modo ordeiro e calmo… Necessariamente com um salto a Bruxelas e às instituições comunitárias pelo meio. (Espero que agarrem a dica!)

Enfim, não queria, porque não posso, pronunciar-me sobre o acórdão em questão… No entanto, como cidadã atenta não posso deixar de lamentar que, “nestes tempos que correm” alguém ainda esteja convencido de que as frases proferidas naquele acórdão são verdadeiras… principalmente quando tais frases emanam de mentes verdadeiramente esclarecidas!

A Bruxelas já!... Antes que novas surpresas surjam...

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