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quarta-feira, 29 de outubro de 2003

Contrastes! 


Sexta-feira, dez e meia da noite. Estávamos atrasadas… Como sempre! Estamos sempre atrasadas! Ou porque o despertador não desperta, ou porque o trabalho aperta, ou porque os carros decidiram sair todos à rua a esta hora… “E caramba, onde está o raio da rotunda?”.
Tínhamos combinado jantar pela primeira vez em casa de um casal amigo, uma delas fazia anos e não queríamos, de modo algum, deixá-las à espera. Mas um cliente que apareceu à última da hora atrasou-nos os planos e o trânsito e as dificuldades que ainda temos em distinguir, nesta cidade Invicta, que ruas vão dar aonde fizeram o resto!

Quase duas horas e muitos telefonemas a pedir indicações volvidos, lá nos sentámos à mesa! O bacalhau com natas estava divinal e a simpatia das anfitriãs, aliada à boa disposição que a Mente Assumida sempre transporta consigo, criaram as condições necessárias para que o stress daquele dia desse lugar a um início de noite bem agradável. Falámos de nós, da vida, dos anos, da telenovela… e, trocámos receitas, histórias e anedotas. E a noite lá foi avançando…

O bacalhau, apesar de servido na dose certa, não foi suficiente para acompanhar a voracidade das conversas e, porque ficámos com vontade de mais, aceitámos o convite para um passeio até ao novo bar lgbt do Porto, o “Gemini’s”.

Só quando entrei dei por mim a pensar que era a primeira vez que estava num bar assumidamente lgbt. É verdade que já tinha estado no "Piccadilly Pub", mas o Picca era diferente, era um bar mais pequeno onde a simpatia de quem nos recebia fazia esquecer qualquer adjectivo que a ele pudesse estar associado. Não era um bar lésbico, gay ou friendly… era simplesmente um bar de gente simpática, onde ao fim de duas visitas, já sentíamos que estávamos a construir amizades… Como as desta sexta-feira…

A primeira sensação foi estranha, não vou negar. Não vou negar que, mal entrei, não consegui evitar que uma palavra me invadisse o espírito: “gueto”… Não vou negar também que, ao cruzarmo-nos com um rapaz de calções brancos e justos e t-shirt não menos justa e branca, eu e a Mente Assumida não conseguimos evitar um olhar cúmplice…E como sabe bem ter alguém que sabe ler nos olhos aquilo que as palavras não dizem…

Como sabe bem falar abertamente da nossa vida… toda… quebrar barreiras… colocar no off por uns instantes a parede que secciona o cérebro de tod@s aquel@s que, como nós, vivem uma vida dupla e têm que distinguir, a cada novo milésimo de segundo, o que é ou não dizível, o que é ou não risível, o que pode ou não ser visível…
Aconteceu ali, naquela noite, uma queda (ainda que ténue e efémera) do Muro (tão ou mais imponente e austero que o de Berlim) que divide a vida em: profissional, familiar, amorosa… etc., etc., etc…. Sem que nenhuma se possa interceptar… Descobri ali que, afinal, é possível falar da Mente Assumida e de trabalho, de livros e ideais, de músicas e filmes, sem pensar nas consequências… sem máscaras… só Verdade!

E que bem que sabe ser assim Verdade!… Sem ter que inventar histórias, farsas e teatros a cada novo instante, só para que dos lábios não se solte aquilo que realmente apetece dizer!...

Entretanto o rapaz dos calções brancos aproximou-se da nossa mesa. Conhecia algumas das pessoas que nos acompanhavam… De repente compreendi que algo em mim estava errado… Incrustadas tinha ainda muitas ideias feitas, conservadoras e inevitavelmente discriminatórias… E porque só as mentes pouco iluminadas não corrigem os seus erros, o rapaz deixou de ser o rapaz dos calções brancos para passar a ser mais uma pessoa que ali estava a divertir-se… Simplesmente… E simpático, por sinal… A palavra “gueto” deixou de fazer sentido e deu lugar à compreensão do verdadeiro significado da palavra “tolerância”, num espaço onde todas as diferenças são aceites, sem olhares de lado, sem comentários… sem discriminação!

Confesso que foi estranho para mim sentir-me tão bem naquele espaço. Eu que nunca gostei de saídas à noite, bares ou discotecas, senti-me ali como se estivesse em casa… senti-me como nunca me senti em nenhum outro bar… Talvez porque até sexta-feira sempre as minhas saídas nocturnas eram sinónimo de paragens em bares hetero, com rapazes hetero e a sua canção do engate desafinada, muito pouco original e, como bem calculam, infinitamente entediosa…

Quando a porta do “Gemini’s” se fechou atrás de nós, as mãos se soltaram e o frio da noite nos recordou que regressávamos ao “mundo real”, tive a estranha sensação de ouvir as pancadas de Molière a avisarem que a peça iria de novo começar…


Noite seguinte. Sábado. Coimbra. Latada.
Porque quem um dia foi estudante na mais velha Academia do País jamais se separa dela não podíamos faltar à festa.

… Vinte e quatro horas depois de termos entrado no “Gemini’s” entravamos no Estádio Universitário...
Centenas de pessoas entregavam-se ao mosh ao som dos Blasted Mechanism… Em cima das bancas das bebidas caloiras e doutoras ofereciam-se em gestos lascivos a caloiros e doutores que não se faziam de rogados (e vice versa)… assim, sem mais…

A chuva fez com que uma multidão se condensasse debaixo da tenda… Os cinco centímetros de privacidade britânicos eram impossíveis… Fingi não me aperceber dos apalpões muito pouco subtis por parte dos futuros doutores deste país… Não vale a pena discutir com o álcool!...

Os bons momentos passados na noite anterior tornavam inevitável a comparação: depois de uma noite genuína, em que pudemos ser nós próprias sem nos sentirmos observadas e em que o nosso espaço foi respeitado, estarmos ali sujeitas às investidas de homens que confundiam um simples olhar com um convite para o que a sua imaginação bem entendesse, aos excesssos do álcool e a assistir a espectáculos dignos de figurarem nas páginas mais “hard core” da história da pornografia, tornou-se ainda mais insuportável…

A pergunta era inevitável (e, viemos a saber mais tarde, quando o comentámos, pairava na cabeça das duas, simultaneamente): o que são afinal os guetos?... O que é a normalidade?...

Ao fim de duas horas desistimos e abandonámos o estádio (não, não consta que alguém tenha anunciado “Ladies and gentlemen Assumida Mente e Mente Assumida have left the building!")… A chuva tinha parado e a noite estava agora agradável… Lá em cima a “Cabra”, a nossa velha torre, sorria-nos… Parámos a meio da ponte de Santa Clara e ficámos ali a olhar a “nossa cidade”… Um postal… Um quadro… Uma obra-prima!
Esquecemos os guetos, o álcool e as diferenças e deixámo-nos ficar ali a acreditar que um dia todas as perguntas deixarão de ser retóricas… Enquanto comentávamos que não era preciso andar muito para compreender que Coimbra é, sem dúvida, a mais bonita cidade do mundo!



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