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sábado, 16 de agosto de 2003

Assumidamente Chocada! 


Maria ia começar a fazer o almoço. Como sempre, à  mesma hora. Há anos e anos que a rotina se mantinha: levantar cedo, preparar o farnel que o marido levaria para trincar no intervalo das obras ou dos pequenos biscates que ia arranjando na cidade mais próxima; acordar os miúdos, dar-lhes um copo de leite; mandar o mais velho tratar das ovelhas, pelo menos agora que estava de férias e enquanto não decidia se ia trabalhar ou se continuava na escola; tratar da mãe acamada desde o dia em que o seu pai morreu; limpar a casa que estava preta, com certeza por causa desses fumos que andavam no ar, de certo deveria ter havido fogo por perto... Parar um pouco, sentar-se no sofá onde já a sua avó gostava de descansar e olhar em volta. Os retratos da família comoviam-na todos os dias, traziam-lhe à memória histórias intemporais de uma casa construí­da com o suor de gerações. Agora mais bonitinha, era verdade. O marido passara os últimos anos a arranjá-la com os tostõezinhos que ia poupando. Pintaram-na, puseram madeiras novas, o ano passado até um ar condicionado instalaram, coisa fina mas necessária, que os ares da serra não são meigos e se a lareira aquece no Inverno, no Verão não havia quem pudesse com o calor... Mas chegava de descanso. Havia que dar comida às galinhas... depois aos coelhos... depois ao porco, que lá para a altura da matança ia dar uma bela febra... e por falar em febras, tinha que ir descascar as batatas. Pegou na faca, e foi no preciso momento em que começou a descascar a primeira batata que a vizinha lhe entrou pela porta dentro a gritar:

- Ai D. Maria, venha depressa, venha depressa que não nos salvamos!

Só então se deu conta das chamas que vinham galgando terreno monte abaixo. Largou as batatas, largou a faca e a rotina... Aos filhos gritou que fugissem para bem longe, à  mãe também, mas as pernas não deixavam. Enquanto tentava arrastá-la pela casa até à porta as chamas implacáveis, vivas, invencí­veis aproximaram-se com uma força que ninguém poderia prever ou explicar. Valeu-lhe o vizinho que a foi arrancar dos braços da mãe e das chamas.

Uma mãe... Uma casa... Uma vida...

Fosse a história ficção e o exercí­cio literário só por si comoveria... Mas ouvi-lo contado na primeira pessoa, ainda que à  distância de um écrãn de televisão, ainda que sentada à mesa da casa de sempre, a comer batatas essas sim bem descascadas, com o consolo subconsciente de saber que por agora não há chamas no horizonte (que Deus nosso Senhor nos livre e guarde!), ouvi-lo contado por quem lá esteve e viu ir-se a casa, ir-se a famí­lia, irem-se os sonhos, a rotina e o sentido que ela dá à vida de cada um, choca, arrepia, toca cá dentro e a eterna necessidade de explicar o inexplicável, de querer ver para além do invisí­vel e perceber para além do imperscrutável, deixa-me com uma pergunta a pairar nos lábios, no pensamento e na alma: porquê?

Há anos que eu, assumidamente católica, assumidamente praticante, acordo com esta palavra que umas vezes é interrogação, outras exclamação, outras indignação, outras conformação (variando de acordo com os estados de alma e as circunstâncias do momento): PORQUÊ? :

Porque é que se somos todos filhos de Deus, criados à  Sua imagem e semelhança, em tudo iguais a Ele menos no pecado, temos todos vidas de dificuldade tão infinitamente diferente?
Porque é que há pessoas que constroem casas... e fortunas... e famí­lias (quantas vezes mais que uma, todos sabemos tão bem!) e nada, nem a água, nem os ventos, nem os fogos... nem o fisco, os perturba? Ao passo que outras pessoas, humildes, trabalhadoras, simples, vêem tão desesperantemente as suas pequenas riquezas desmoronarem-se assim... imprevisivel e inexplicavelmente?
Porque é que há fogos que, só por serem convencionais, podem iluminar as mais escuras das noites e devastar tudo em volta, ainda que existam apenas para se extinguirem logo pela manhã? Enquanto outros fogos, mais fortes, mais seguros, mais convictos, mais... verdadeiros só podem arder baixinho no escuro das quatro paredes que os abrigam de uma água ávida de apagar a beleza de uma chama proibida?...

Porquê?, pergunto-me eu... Aliás, pergunto-me porque acabei a falar deste outro fogo que não é morte, ao contrário do que se cruzou com a mãe da D. Maria, mas é antes um fogo que ilumina, que equilibra, que dá vida... e do qual já nasceu até um arco-í­ris (se é que me faço entender)?
Talvez seja porque o fogo que vi ainda reflectido na sombra que era hoje o olhar da D. Maria, me tenha recordado esse outro fogo devastador que se dá por vários nomes - intolerância, homofobia, conservadorismo, ignorância... - e que tantos sonhos... tantas casas... tantas vidas terá deitado por terra.
Ou talvez porque a certeza interior de que um dia a D. Maria poderá, com a ajuda dos amigos e dos vizinhos, voltar a ter uma casa e uma faca para descascar as suas batatas seja tão forte quanto o desejo, que assumidamente alimento, de um dia poder também eu construir o sonho, a casa, a vida que esses fogos maiores assumidamente não têm deixado brotar!

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